Devo estar cultivando a insensibilidade, já que não me comoveu o choro
presidencial nem a circunspeção dos políticos nos funerais. Além disso, temos
que suportar o horroroso espetáculo dos apresentadores explorando a biografia
das vítimas ou especialistas explicando como os alvéolos são destroçados pela
inalação de fumaça. Nesse campo de batalha, só cabem urros, uivos, ritos de
contrição. A dor merece nosso constrangimento.
São poucas ou muitas as palavras que
podem descrever acuradamente o absurdo. Absurdo é pouco, estultilóquio,
limitado, dislate, distante. Precisava de um vocábulo sem precedentes. Pois
“galimatias” revela um glossário analógico apropriado para o desastre gaúcho:
um acervo de heresias e incoerências disparatadas, coxia de desconchavos,
parvoíce chapada, um amontoado de cacaborradas, aranzel, inépcia, chocarrice.
Para contornar registros menos recomendáveis ao grande público, cada um deles
pode indicar o repertório que se passa pelas nossas cabeças quando tragédias
completamente evitáveis parecem inevitáveis.
A falta de decência não é só fazer as
coisas sem pensar que outros podem se ferir ou sair lesados. Paira no ar um
senso de desproporção, tocado pelo culto ao único mito invicto de nossa era:
grana.
Há uma máxima que deveria vir
instantaneamente à cabeça de qualquer um: “Tratarei todo filho como se fosse
meu”. Passa longe do sentimento predominante. Que dizer dos donos do lugar e
dos homens da segurança? Inicialmente, sem perceber a eminente tragédia, impediram
pessoas de sair do inferno. Quais as regras a serem seguidas e quais merecem
desobediência civil já?
Não sei quantos mais poderiam ter sido
salvos da asfixia, da carbonização. Uma vida poupada teria feito toda
diferença. Mas havia a barreira do execrável pedágio, a pirotecnia fora de
lugar, o entupimento das salas, as formigas espremidas na armadilha.
Não vem ao caso apontar para a banda ou
para os proprietários como alvos óbvios de punição e responsabilização
criminal. Já que pais e mães tiveram seus futuros cassados, e as vítimas ardem
na sombra, seria preferível acompanhar o que o poder público tem a dizer.
Em geral, fiscais são bons burocratas
e, raramente, têm consciência de seu papel vital na prevenção dos desastres.
Prevenção, lugar-comum, baixa visibilidade, antipopular, mas a única
palavra-chave para não termos que ouvir a esfarrapada desculpa “fatalidade”.
Isso não é um se, está acontecendo agora. Nas enchentes, na calamidade absoluta
que é a segurança pública do país, na incapacidade organizacional para gerir o
dia a dia das cidades. A verdade é que, se ainda vivemos ilesos, é por sorte e
apesar do Estado. E não se trata de apontar para um único partido. Todos
comungam deste mínimo múltiplo comum, a incapacidade de enxergar que toda matéria
política caberia numa sentença: governo é para o povo. Submergidos no populismo
ignorante, cosmético e estelionatário, quanto dinheiro ainda será arrecadado
nas miríades de impostos pagos para fiscalizar e manter as bocas de lobo, as
escolas, o passeio publico, a segurança, a defesa civil? E como isso será
gasto? Não sabemos e ninguém sabe. Mark Twain escreveu: “O governo é meramente
um servo, meramente um servo temporário: não pode ser sua prerrogativa
determinar o que está certo e o que está errado, e decidir quem é um patriota e
quem não é. Sua função é obedecer a ordens, não originá-las”.
Só quando os administradores forem
imputáveis e sentirem nos bolsos e na privação de liberdade que, se falharem em
prevenir o prevenivel sofrerão consequências pesadas, talvez tenham
mudanças efetivas no dislate que é o planejamento público no Brasil. Só quando
a opinião pública exigir que as apurações não se limitem a dois ou três bodes
expiatórios, mas, a quem, de fato, permitiu a vigência do absurdo. Talvez ai, calçados
na educação solidária, o respeito aos cidadãos terá status de lei.
Na hora dos massacres a solidariedade
autêntica vem das pessoas desvinculadas do poder. Emerge pura da nossa emoção,
premida pelo nada, esvaziada de sentido, e lapidada pela voz rouca do abandono.
Um sobrevivente do incêndio descreveu “Vi o monte de corpos empilhados uns em
cima dos outros, como os judeus no Holocausto”. Ainda que o cenário justifique
a analogia, a outra semelhança é a gratuidade com que essas vidas foram
incineradas.
Todos nós, civilizados desde o berço,
podemos enxergar tragédias como inerentes à condição humana. Rachaduras na
placa continental, asteroides, furacões e terremotos são eventos inevitáveis,
às vezes inexoráveis. Crematórios, não. A dor merece nosso constrangimento,
assim ao menos sofreremos todos juntos. Não entendo bem por que, mas parece que
precisamos nos derreter para nos unirem.
Qualidade de vida: Medidas e Padrões gerais
Qualidade de vida é uma noção
eminentemente humana, que tem sido aproximada ao grau de satisfação encontrado
na vida familiar, amorosa, social e ambiental e à própria estética existencial.
Pressupõe a capacidade de efetuar uma síntese cultural de todos os elementos,
que determinada sociedade considera seu padrão de conforto e bem-estar.
O exercício dos
direitos não cura, mas pode aliviar!
Adriana da Cunha
Leocadio – Especialista em direito e saúde, Bacharel em Direito, Membro da
Organização Mundial da Saúde – OMS e Presidente da Ong Portal Saúde.